quarta-feira,
4 julho, 2018 - 9h11 | SAÚDE
Substância
produzida por larvas de mosca pode curar feridas crônicas
Uma
ferida comum cicatriza em tempo relativamente curto. O processo
de cicatrização envolve, grosso modo, três
etapas: inflamação, proliferação e
regeneração. Feridas crônicas são aquelas
que permanecem no estado inflamatório e, passados mais
de seis meses, ainda não cicatrizaram
José
Tadeu Arantes | Agência FAPESP
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Substância
produzida por larvas de mosca pode curar feridas crônicas
- Estudo feito no Centro de Toxinas, Resposta-Imune e Sinalização
Celular (CEPID CeTICS) identificou, sequenciou e descreveu
a estrutura do peptídeo sarconesina, que elimina vários
tipos de bactérias | foto: CeTICS |
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É
o caso das úlceras provocadas por leishmaniose. Ou de feridas
de pé diabético que, muitas vezes, resultam em amputação.
Uma forma antiga de tratamento, que havia sido descartada com
o advento dos antibióticos, está sendo reabilitada
agora em alguns hospitais dos Estados Unidos, Europa e América
Latina. No Brasil, é aplicada no Hospital Universitário
Onofre Lopes, em Natal, Rio Grande do Norte.
Trata-se
da larvoterapia: a utilização de larvas de mosca
para remover o tecido necrosado, romper o biofilme bacteriano
e eliminar as bactérias, e promover o crescimento de tecido
sadio. A despeito de seu caráter aparentemente repulsivo,
o tratamento tem-se mostrado bastante eficiente na cura dessas
feridas recalcitrantes.
O tema
é objeto de estudo de Andrea Diaz Roa, doutoranda no Laboratório
Especial de Toxinologia Aplicada do Centro de Toxinas, Resposta-Imune
e Sinalização Celular (CeTICS), um Centro de Pesquisa,
Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela
FAPESP. Nascida na Colômbia e pós-graduanda em Ciências
Biomédicas na Universidad del Rosário, de Bogotá,
Roa é orientada no CeTICS por Pedro Ismael da Silva Jr.,
pesquisador científico do Instituto Butantan.
“Ela
fez um trabalho pioneiro, realmente inovador, sobre o peptídeo
antibacteriano sarconesina, produzido pela larva da mosca Sarconesiopsis
magellanica”, disse Silva Jr. à Agência FAPESP.
O trabalho foi apresentado na 47ª Reunião Anual da
Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular,
realizado em maio em Joinville (SC).
Diaz Roa
foi a primeira a identificar, sequenciar e descrever a estrutura
do peptídeo, atribuindo o nome sarconesina, em referência
à mosca Sarconesiopsis. A ideia é utilizar a substância
como princípio ativo de um medicamento. Por ser uma molécula
relativamente pequena, a sarconesina pode ser sintetizada em laboratório,
de forma totalmente artificial. Ou ser produzida por engenharia
genética, introduzindo-se as bases de DNA que a codificam
em uma bactéria hospedeira.
“Conhecemos
sua sequência de aminoácidos, avaliamos sua atividade
antimicrobiana em relação a vários tipos
de bactérias e estamos cogitando apresentar um pedido de
patente”, disse Silva Jr.
Normalmente,
os peptídeos antimicrobianos atuam rompendo as membranas
dos microrganismos adversários. A ação é
puramente eletrostática. As membranas são eletricamente
negativas e os peptídeos são eletricamente positivos.
Ao serem atraídos, os peptídeos grudam nas membranas
e arrancam-lhe pedaços. Os conteúdos dos microrganismos
escoam pelos buracos e as bactérias acabam morrendo.
“Não
é isso que ocorre com a sarconesina. Já sabemos
que ela é eletricamente neutra. Nossa hipótese é
que ela seja, de alguma maneira, internalizada pelos microrganismos
e atue neles a partir do interior, desestruturando o DNA ou o
RNA. Ainda estamos investigando esse mecanismo”, explicou
Silva Jr.
Diaz Roa
conta que está abordando o assunto de duas maneiras. Por
um lado, transformando a sarconesina em remédio, sem terapia
larval. Por outro, implementando a prática da larvoterapia
no Brasil.
Recentemente,
ela visitou, nos Estados Unidos, o laboratório de Ronald
Sherman, considerado o “pai” da
larvoterapia moderna. O projeto de Diaz Roa agora é fixar-se
no Brasil e passar a aplicar esse procedimento médico no
país.
“As
moscas são criadas em laboratório e colocam seus
ovos sobre material orgânico. As larvas estéreis
são colocadas no interior das feridas, onde permanecem
por 24 a 48 horas. Utilizam-se em média 20 larvas por centímetro
quadrado. A ferida é coberta durante o procedimento e lavada
depois da retirada das larvas. Dependendo do caso, uma única
aplicação é suficiente. Elas se alimentam
apenas da parte necrosada da ferida”, disse Diaz Roa.
Abstraindo-se
a repugnância que a larvoterapia possa provocar, o procedimento
em si não é mais incômodo do que a própria
ferida. Essas geralmente coçam, doem ou exsudam.
No caso
da úlcera de pé diabético, a dessensibilização
provocada pela própria doença impede que o paciente
sinta qualquer desconforto. E a terapia larval sozinha pode promover
a reversão total do quadro.
Em relação
à leishmaniose cutânea, sua ação é
apenas coadjuvante, pois a recalcitrância da ferida resulta
da presença ativa do protozoário do gênero
Leishmania, que inflama o local. O tratamento principal neste
caso consiste em matar o parasita por meio de medicamentos bastante
tóxicos, controlados pelas agências de saúde.
E o papel da larvoterapia será promover a cicatrização
da ferida – o que, muitas vezes, leva bastante tempo para
ocorrer.